segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Conto: Amélia

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Finalmente Ian terminou a tela que vinha pintando há três semanas. Uma menina com cabelos pretos e longos, de olhos azuis e pele branca; segurava uma pequena cesta de flores nas mãos. O quadro que ele chamou de Amélia.
De repente, as luzes do estúdio começaram a piscar, dando sinal de que em breve falhariam. As coisas ao seu redor começaram a tremer, iam direto de encontro com o chão. Parecia estar havendo um terremoto, mas não havia tremor algum. Preocupado com a sua pintura recém concluída, ele olhou na direção do quadro para certificar-se de que nada lhe acontecera, e viu que a pintura da menina não estava mais na tela. Ela estava de pé, bem na sua frente. À medida que as luzes piscavam, sua aparência mudava; foi mudando e mudando, até não restar mais nada daquilo que fora feito pelo pintor. Agora, sua aparência era o oposto do que o autor imaginara quando a pintou. A menina da foto, que antes era linda, agora tinha uma aparência assustadora. Os cabelos ficaram eriçados, os olhos completamente negros, e no lugar do cesto de rosas, uma faca bem afiada. A pintura ganhara vida, e estava andando; andando em direção ao seu criador.
Bem lentamente se aproximava. Nas frações de segundos em que as luzes acendiam e apagavam, ela ficava cada vez mais próxima. Ian tentou correr, mais não conseguiu. Quando se deu conta, num piscar de olhos, ela estava à sua frente, cravando-lhe a faca no coração.
Ian acordou assustado com o pesadelo, que vinha se repetindo todos os dias há dois meses. Já não aguentava mais sonhar com isso, e sentia que se esse pesadelo continuasse ele acabaria maluco. Então decidiu procurar por ajuda.
No Instituto do Sono, ele foi examinado cuidadosamente por toda a equipe médica responsável, e depois de uma bateria de exames, chegou a vez da análise principal; ele teria que dormir no laboratório para ter o seu sono inspecionado.
Puseram-lhe um monte de fios, e depois de tudo pronto, ele só precisava deitar e dormir. Foi o que fez. Dormir foi difícil, mas Ian conseguiu. Mais ou menos cinco minutos depois, o pesadelo começou. Ele debatia, se mexia o tempo todo na tentativa de acordar, mas de nada adiantou; ele só acordaria no momento em que a faca fosse cravada no seu peito. Essa foi a parte mais agitada de toda a análise.
O encaminharam para o psicólogo, que lhe sugeriu tentar mudar o sonho; imaginar outra situação para o pesadelo. Ou seja, fantasiar um sonho a partir desse pesadelo.
— Pense de outra forma. Imagine esse pesadelo do jeito que você quer que ele seja. — Sugeriu o doutor.
— Como? — Indagou.
— Sei lá. Tenta imaginar que a menina sai do quadro, não para lhe matar, mas sim para agradecê-lo por tê-la criado. E quanto à parte da mudança da aparência, tenta imaginar que, à medida que ela vai se aproximando de você, vai ficando cada vez mais linda. Que ao invés das luzes estarem falhando, o seu estúdio estará sob luzes intensas. E no lugar da faca, ela terá nas mãos o tal cesto de flores que você sempre pinta. Tudo ao contrário do que acontece no seu pesadelo. Imagine o que quiser; transforme esse pesadelo tão terrível em um sonho maravilhoso.
— Não acho que vá dá certo.
— Talvez não no início, mas à medida que você for imaginando, aos poucos o seu sonho irá mudar.
Ele resolveu tentar; não tinha nada a perder. Imaginou tudo o que pôde de maravilhoso, mas de nada adiantou. Mais uma vez voltou ao Instituto do Sono na esperança de encontrar outra solução; algum outro jeito de se livrar do problema.
— O método funciona sim, já deu certo com muita gente. — Garantiu o psicólogo.
— Mas comigo não funcionou. Não pode me receitar alguma coisa? Algo para dormir melhor.
— O seu problema não é de distúrbio do sono; é psicológico.
— Então o que eu devo fazer?
— Talvez o processo acelere se você tentar por tudo isso pra fora.
— Como assim?
— Trabalha com pinturas em tela, certo? — Ele assentiu. — Então eu sugiro que você tente pôr esse pesadelo pra fora da sua cabeça com o que você sabe fazer de melhor; pintando.
— Quer que eu pinte o quadro?
— Qualquer coisa que te incomode no pesadelo. A parte que mais te amedronta; ou até mesmo você poderia pintar a própria tela do seu sonho. Não precisa ser só uma tela, pode ser mais de uma. Vai depender da sua necessidade. Mesmo assim, não deixe de tentar aquele método que te indiquei. — Pediu.
Ele concordou e voltou para casa. Começou a expulsar seus demônios como o psicólogo sugerira. À medida que pintava, tinha a sensação de estar mais leve; talvez estivesse mesmo dando certo. Claro que a pintura levaria um tempo até ficar pronta; mas até lá, ele teria tempo para continuar pondo em prática o método de transformação de sonhos que o psicólogo sugerira.
Pouco a pouco seu pesadelo fora mudando. Às vezes as flores continuavam sendo flores, às vezes a garota o abraçava ao invés de esfaqueá-lo; pequenas mudanças, mas que para ele faziam toda a diferença.
Depois de três semanas ele finalmente terminou a pintura. Estava impecável, mais bonita do que no seu sonho. Era incrível como ele não cansava de admirá-la. Aquela, sem dúvida, foi a sua melhor obra até então. Ian lutava consigo mesma tentando decidir se a venderia ou não. A pintura com certeza o traria muita fama, mas em compensação, ficaria sem ela. Decidiu ficar com ela por mais um tempo, e depois a venderia.
Na mesma noite em que a concluíra, o seu pesadelo modificou completamente. Tudo o que acontecia antes foi mudado. A menina não o matava mais, pelo contrário, o abraçava. O ambiente não era mais sombrio; agora era todo iluminado e alegre. As coisas não estremeciam e caíam mais ao chão; agora elas flutuavam. Tudo acontecia exatamente o oposto do pesadelo de antes. O método indicado pelo psicólogo finalmente havia funcionado. Pintar a tela havia sido uma boa idéia afinal.
Mesmo que isso fosse lhe render muito dinheiro, ele não tinha mais vontade de vender a tela. Preferiu ficar com ela. Tinha medo de que seu pesadelo voltasse caso se desfizesse de sua linda obra de arte.
Ian voltou ao Instituto do Sono para ser avaliado mais uma vez. O psicólogo ficou feliz em ver que seu método de modificação de sonhos havia dado certo. Há cerca de uma semana que ele não sonhava mais com aquilo, e até já estava tendo outros sonhos diferentes deste. É, não havia mais o que fazer, ele estava curado e já podia seguir com a sua vida.
Depois do jantar, ele foi ao seu estúdio, tirou o lençol de cima da tela, e ficou admirando sua obra de arte, como costumava fazer todos os dias. Ele a olhava fixamente, parecia hipnotizado.
— Quem dera você pudesse ser real Amélia. — Desejou, olhando a menina no quadro. — Seria a minha filhinha; a menininha que eu sempre sonhei em ter. Você me abraçaria todos os dias como no meu sonho.
A porta do estúdio, que ele deixara aberta, de repente se fechou. Os objetos flutuavam ao seu redor e o ambiente ficara tão agradável. Receoso em ficar trancado no estúdio, resolveu verificar por que a porta havia sido trancada. Ao tocar a maçaneta da porta, algo lhe chamou a atenção.
— Papai. — Uma voz doce e infantil chamou. — Você não quer mais ficar comigo? Vai me deixar aqui sozinha? Você disse que me queria.
Imediatamente ele virou-se na direção da branda voz. Ela estava lá, bem à sua frente; a menina que ele idealizara em sua tela. Tinha um olhar triste de partir o coração. Parecia insegura e amedrontada. E a julgar pelo seu tom de voz, aparentava ser um encanto de criança. Ele não resistiu à vontade de abraçá-la.
— Você é mesmo real Amélia! O meu sonho se realizou! — Falou admirado.
— Obrigado por ter me criado papai.
Ele se afastou um pouco para olhá-la nos olhos. Ela tinha um sorriso simpático nos lábios. Os objetos continuavam a flutuar. Espontaneamente ele olhou para a pintura; a menina do quadro continuava lá. Ele se afastou da sua filhinha por um momento e caminhou até o quadro, de costas para ela. Não entendia como seria aquilo possível. Nesse momento os objetos pararam de flutuar e começaram a tremer. As luzes começaram a piscar; mas ele estava tão atônito, que nem percebeu a mudança no ambiente.
— Papai? — Amélia o chamou mais uma vez. — O que está fazendo?
Ele virou-se para a filha.
— Não é nada. Tá tudo bem.
Ian caminhou lentamente em direção à filha para abraçá-la mais uma vez. Foi quando então sentiu uma pontada muito forte nas costas. Confuso, virou-se para tentar entender o que acontecia. Lá estava ela; a menina assustadora do seu pesadelo. Acabara de cravar-lhe uma faca nas costas. Ele olhou o quadro; não havia mais nenhuma menina nele. No entanto, estranhou não ouvir o grito assombrado da outra menininha; que deveria estar gritando muito assustada por ver que estavam machucando o seu pai. Mas ao olhar na direção dela mais uma vez, espantou-se em ver que o lugar estava vazio. Não havia menina alguma lá. Teria ele imaginado tudo isso? Olhou novamente para a horrenda criatura que lhe esfaqueava, e sua feição era exatamente como no seu pesadelo.
— Por quê? — Foi tudo o que conseguiu espremer de sua garganta.
Sem conseguir falar ou ao menos gritar por socorro, ele morreu.
A polícia chegou ao local no dia seguinte. Descartaram a hipótese de roubo, porque a pintura ainda estava lá; completamente intacta. Exatamente como ele a pintara. Como ele não tinha mais ninguém na vida, leiloaram a pintura para fundos beneficentes.
Os peritos investigaram, mais nunca desvendaram o mistério. Não havia absolutamente nenhuma prova que os levasse ao assassino. Também não poderia, era sobrenatural. Depois de um tempo, o caso foi arquivado e esquecido.
E assim nasceu a maldição de Amélia. O quadro tem circulado por aí desde então; e por onde passa, deixa sua marca. Nenhum dos assassinatos cometido pela pintura foi explicado até hoje.

Autor: Lana Prado

Fonte: http://www.contosgrotescos.com.br/

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